Ney Lopes – advogado, jornalista e ex-deputado federal – [email protected]
Foi publicada a versão oficial da Reforma da Previdência pretendida pelo governo.
Um ponto deve ser esclarecido, antes de qualquer análise.
Trata-se de uma Reforma absolutamente necessária ao país.
Não há como negar que o mundo evoluiu e os sistemas previdenciários para sobreviverem terão quer ser modernizados, sobretudo o brasileiro.
Logo, em nenhum momento desta análise, o autor do artigo se insurge contra a Reforma.
A grande questão é como fazê-la: se optando, por uma “rua de mão única”, em que somente alguns “paguem o pato no final das contas”.
Ou, dividindo sacrifícios entre as várias categorias sociais, sobretudo prestadores de serviço (privados e públicos) e empresas.
O déficit previdenciário existe e conspira contra o equilíbrio das contas públicas.
Impossível negar tais evidências, sem prejuízo da formulação de algumas observações, em função do que pretende o governo.
Soa falso esbravejar que a proposta encaminhada ao Congresso é para o “bem do Brasil” e quem se opuser a ela seria contra o país.
Por outro lado, também soa falso colocar no texto aparentes “iscas sociais”, “capitalizando” o discurso contra privilégios, unicamente para alcançar Ibope elevado.
Está claro que a reforma sugerida é para o mercado, para quem tenha vocação de lucro, quem tenha vocação de empreendedor. O que sobrar dessa conta atuarial inflexível será aplicado aqui, ali e acolá, numa visão social mais abrangente e equitativa.
O cidadão vocacionado, por exemplo, para o serviço público (indispensável num Estado democrático) estará nivelado por baixo. Almejar um bom rendimento no exercício de cargo público é considerado “privilégio” e é penalizado violentamente.
Note-se que os trabalhadores do setor público, que poderão receber aposentadoria mais que o teto do INSS, as alíquotas continuarão aumentando até chegarem a 22% do que exceder R$ 39 mil mensais.
Por exemplo: um servidor público aposentado que recebe R$ 30 mil pagará 16,11%, com aumento considerável.
Some-se a isso o que esse servidor já paga de Imposto de Renda e outros encargos.
Claro que nada sobrará para a chamada “capitalização” em fundos privados (algo inaceitável), que o governo anunciará em nova proposta de projeto de lei.
O resumo da ópera é que a grande atingida será a “classe média”.
A reforma considera apenas dois segmentos na pirâmide social do pais: baixa renda e alta renda (essa sim, beneficiária e não atingida em absolutamente nada).
Mesmo assim, a baixa renda, igualmente à classe média, também “paga o pato”.
Anunciadas duas mudanças, por exemplo, no Benefício de Prestação Continuada.
A primeira medida é o adiamento da idade para que se tenha acesso ao benefício completo. Atualmente, idosos a partir de 65 anos podem requerer um salário mínimo. Com a reforma, só a partir de 70 anos é que o valor poderia ser recebido.
O nordeste será atingido em cheio por essa restrição, pelo contingente de pobreza que abriga. Há estados nordestinos, onde a expectativa de vida é de 67 anos.
Por outro lado, o governo concederia um benefício menor para pessoas a partir de 60 anos.
Quem tem entre 60 e 69 anos e comprovar as condições para ter direito ao benefício receberia R$ 400.
O valor é fixo, não seria vinculado ao salário mínimo ou corrigido pela inflação.
Atualmente, trabalhadores que recebem até dois salários mínimos tem direito a um abono de um salário mínimo por ano.
A proposta é reduzir os beneficiários e pagar o abono apenas a quem tem renda de até um salário mínimo.
Outro ponto importante: na verdade é ilusório dizer que a alíquota foi reduzida (7.5%) para os trabalhadores.
A verdade é a seguinte: atualmente, os contribuintes da iniciativa privada pagam alíquotas fixas de 8%, 9% ou 11% sobre o rendimento, a depender da faixa salarial.
Pela mudança, cada trabalhador passará a contribuir com uma alíquota efetiva que corresponde exatamente a seu salário.
A contribuição terá uma progressão gradativa dentro de cada faixa salarial.
Sobre um salário mínimo serão recolhidos 7,5%. Entre R$ 998,01 e R$ 2.000,00, a taxa será graduada entre 7,5% e 8,25%. Entre 2.000,01 e 3.000,00, a alíquota irá variar de 8,25% a 9,5%.
No caso dos salários de R$ 3.000,00 a R$ 5.839,45 (teto do INSS), oscilará entre 9,5% e 11,68%.
Observa-se que realisticamente a alíquota aumentou, já que não se pode consagrar o princípio de que o trabalhador estacione na remuneração de um salário mínimo.
Não se faz política pública com essa ótica canhestra.
Por justiça, o texto tem uma boa linguagem técnica.
Todavia, é como um iceberg (grande massa de gelo que se desprende de plataforma de gelo e que vaga, à deriva, nos oceanos).
No “iceberg” o perigo está naquilo que está invisível, sustentando o que está na superfície.
Os técnicos dizem que nove décimos do iceberg estão submersos, ou seja, na superfície ninguém percebe a realidade do perigo.
No caso da proposta da Previdência, senão nove décimos, pelo menos um bom percentual do que ela contém, está “escondido” nos benefícios concedidos unicamente ao mercado e a sua lógica perversa.
Outra observação necessária: não é possível tratar de um problema econômico sem considerar a inegável importância do mercado.
Seria ingênuo pensar assim.
Todavia, nunca é demais lembrar o conselho do Papa Francisco aos estudantes de Lyon, França:
“Tenham “a força e a coragem de não obedecer cegamente à mão invisível do mercado. Aprendam a se manterem livres do fascínio do dinheiro, do cativeiro em que o dinheiro encerra todos aqueles que lhe prestam culto”.
Certamente, os tecnocratas empedernidos indagarão: então, de onde virá o dinheiro para cobrir o déficit?
Faltou à proposta de reforma previdenciária anunciar qual será a cota de sacrifício da economia privada para ajudar a “fazer caixa” e reduzir o déficit previdenciário.
Ou, continuará como “dantes no quartel de Abrantes”?
Para se ter uma ideia, o total de subsídios dados pela União em 2017 chegou a 354,7 bilhões, equivalente 5,4% do PIB, sem fiscalização do retorno social.
Esses “subsídios” – alguns permanentes – são receitas, que o governo deixa de ter e falta ao custeio da previdência, bancada, mês a mês, pelo bolso dos servidores, assalariados e empresas.
Não se justifica o critério da “mão única”, no qual o vilão-responsável sejam os trabalhadores, servidores públicos e beneficiários da previdência.
É necessário ir fundo na identificação das “causas”, que têm origem em vários fatores, sobretudo os “vazamentos”, de bilhões e bilhões de recursos públicos, decorrentes de “fraudes e privilégios”, historicamente “justificadas” sob variados pretextos, sem prestação de contas.
Se a reforma tratasse desses “vazamentos” (a atual isenção sobre distribuição de lucros dividendos e a não taxação de grandes fortunas), o “déficit” seria reduzido e o “sacrifício” melhor dividido.
Infelizmente, os assalariados, servidores públicos e beneficiários da previdência social estão convocados para “pagarem o pato” sozinhos.
Outras indagações semelhantes serão feitas em análises posteriores.
Só resta uma esperança: a presença política lúcida do Congresso Nacional, sem radicalismo, olhando o Brasil, porém numa ótica que não seja de “mão única”, no sentido de preservar valores e lutar pela justiça social.
Realmente essa tarefa deverá sobrepor-se às ideologias e aos partidos. Para isso. o governo tem que dá o exemplo e sentar-se à mesa, dialogando.
Se o governo partir do pressuposto de que é “proprietário privado da verdade e das soluções nacionais”, não alcançará o seu objetivo, por mais boa fé que tenha. Poderá, inclusive, dá causa a grande instabilidade social e política no país.
O Presidente precisa ser aconselhado, esclarecido, inclusive porque a sua formação é inegavelmente de visão social, sem excessos.
A essa altura essa presença ao lado do Presidente é indispensável e a única luz que surge no final do túnel.
O único caminho que se espera para a implementação das mudanças necessárias ao Brasil será o da real “divisão de sacrifícios”, o que não está contido na proposta em tramitação no Congresso Nacional.
Deus ajude o Brasil!